Os dois personagens que citamos no título, Bill Gates e Yuval Noah Harari são pessoas de tempos e contextos bastante diferentes, a ponto de parecer não fazer muito sentido falar sobre os dois no mesmo texto.
Porém eles têm uma coisa em comum. Em algum momento se ocuparam em refletir sobre o que pode estar para acontecer conosco, tendo como prisma a evolução da tecnologia e os impactos da chamada Quarta Revolução Industrial.
Gates, no livro A estrada do futuro, especulou sobre os impactos da tecnologia em 20 a 30 anos após 1995. Harari, no livro 21 lições para o século 21, especula sobre o que há por vir dos nossos dias até por volta de 2050.
Cada um em seu tempo, Gates e Harari vislumbraram importantes transformações provocadas pela tecnologia em nossas vidas antes que a maioria de nós pudesse se dar conta delas. Eles foram capazes de enxergar essas transformações, que já se anunciavam (ou ainda se anunciam) no horizonte, mas que para a maioria de nós ainda parecia ou parece ofuscada por algum tipo de neblina.
Gates e A estrada do futuro
William H. Gates III, que todos nós conhecemos como Bill Gates, é um dos fundadores da Microsoft e um dos responsáveis pela revolução da microinformática no começo dos anos 1980.
No começo da década de 1990 estávamos prestes a começar a viver uma revolução tecnológica, mas ainda não tínhamos como saber o que viria pela frente.
Naquele momento os computadores pessoais já eram populares e a internet já existia, porém ainda estava restrita a pequenos grupos de aficcionados por tecnologia, universidades e grandes empresas. Tim Berners-Lee tinha acabado de inventar o World Wide Web.
No começo dos anos 1990 o principal meio de comunicação de massa era a televisão e as telecomunicações ainda giravam em torno dos telefones fixos. O telefone celular já começava a aparecer, mas era algo tão estranho que poucos davam atenção a ele.
Foi nesse contexto que Bill Gates escreveu o livro A estrada do futuro, publicado no ano de 1995.
O título é inspirado na expressão information superhighway, ou autoestrada da informação, que aparentemente foi criada pelo então senador americano Al Gore, no final dos anos 1970, e que se tornou muito comum no vocabulário de políticos e jornalistas interessados em tecnologia. Gates considerou que naquele momento, meados dos anos 1990, havíamos reunido os recursos necessários para a construção dessa autoestrada:
... o microcomputador - com hardware em evolução, aplicações profissionais, sistemas on-line, conexões à internet, correio eletrônico, programas de multimídia, ferramentas de criação, jogos - é o alicerce da próxima revolução. (GATES, 1995, p.7-8)
No livro, após percorrer toda a história da evolução dos dispositivos eletrônicos, Gates vislumbra o surgimento de um "dispositivo portátil conectado", que em certa altura ele começa a chamar de "micro de bolso". No livro há até mesmo o desenho de um protótipo desse dispositivo.
Veja como ele descreve as funcionalidades e a utilidade desse novo aparelho:
O que você carrega hoje com você? Provavelmente, pelo menos o chaveiro, a carteira, de identidade, dinheiro e um relógio. Muito possivelmente, leva também cartões de crédito, talão de cheque, traveler's checks, uma agenda de endereços, uma agenda de compromissos, bloquinho de anotações, material de leitura, uma câmera, um gravador de bolso, um telefone celular, um pager, ingressos para um concerto, um mapa, uma bússola, uma calculadora, um crachá de acesso, fotografias e, talvez, um bom apito para pedir socorro. Você vai poder armazenar tudo isso e ainda mais no aparelho de informação que chamamos de micro de bolso. (p.99)
Parece com algo que você conheça? Gates praticamente descreveu o que hoje conhecemos como smartphones. Não é incrível como parece que ele estava tão perto e ao mesmo tempo tão longe de ver exatamente o que estava por vir? Micro de bolso era mesmo um nome horrível… Ainda bem que não chamamos nossos celulares desse jeito!
Veja outro exemplo de como ele estava bastante perto de entender o que estava para acontecer, mas ao mesmo tempo longe de enxergar como a coisa aconteceria de fato:
Quando envio uma mensagem para você, ela é transmitida por linha telefônica do meu computador para o servidor que tem a minha "caixa postal" e daí passa (...) para o servidor que tem a sua caixa postal. Quando você se conecta com seu servidor (...) pode recolher o conteúdo de sua caixa postal, inclusive a minha mensagem. É assim que funciona o correio eletrônico. Você pode digitar uma mensagem uma vez e mandá-la para uma ou para 25 pessoas, ou enviá-la para o que se chama "conferência eletrônica" (de "bulletin board", literalmente "quadro de avisos"). (...) Disso resultam conversas públicas, à medida que as pessoas respondem às mensagens. (p.122)
Parece familiar? Lendo isso só consigo pensar nas nossas Redes Sociais. Que bom que elas não se chamam "conferência eletrônica"!
No livro ele ainda faz várias outras aproximações desse tipo, falando de comércio eletrônico, casas inteligentes, educação à distância etc.
Mas uma discussão fundamental que Gates faz no livro é a respeito do acesso à tecnologia e ao progresso. "O progresso tecnológico vai forçar toda a sociedade a enfrentar novos e difíceis problemas, apenas alguns previsíveis" (p.309).
Gates toca na preocupação natural das pessoas com seus empregos em momentos de grande mudanças tecnológicas. "Homens e mulheres têm medo de que seus empregos se tornem obsoletos, de não serem capazes de se adaptar a novas formas de trabalho, de seus filhos ingressarem em indústrias que vão deixar de existir" (p. 310).
Ele tenta não propor soluções para esse problema, mas deixa clara sua visão de que muito pouco pode-se fazer a respeito: "Profissões inteiras vão sumir, mas outras, novas, vão surgir. Isso vai acontecer nas próximas duas ou três décadas." (p. 310). E também de mostra cético quanto a abrangência desse fenômeno: "Apesar de o microprocessador e o microcomputador terem alterado e até eliminado algumas profissões e empresas, é difícil encontrar algum grande setor da economia que tenha sido afetado de forma negativa" (p. 310).
E isso nos leva a Yuval Harari…
Harari e suas 21 lições para o século 21
Pegando o link do que disse Bill Gates, de que as profissões enfrentariam suas transformações em duas ou três décadas após 1995 (ou seja, entre 2015 e 2025), estamos justamente no momento de reavaliar essa preocupação.
E isso é uma das coisas que Harari faz em seu livro 21 lições para o século 21, publicado em 2018, onde o autor se propõe a analisar os impactos que os avanços da tecnologia da informação e a biotecnologia anunciam para as próximas décadas.
Yuval Noah Harari é Ph.D. em História e é professor na Universidade Hebraica de Jerusalém. Ficou mundialmente conhecido com seus livros Sapiens: Uma Breve História da Humanidade e Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã.
Em 21 lições para o século 21 ele parece chegar na mesma problematização que Bill Gates chegou 20 anos atrás: a evolução da tecnologia, além de transformar as profissões irá acabar com muitos empregos.
Enquanto Bill Gates tinha como matéria prima para suas reflexões apenas os primeiros passos da revolução tecnológica, Harari já leva em conta os impactos da inteligência artificial e da biotecnologia, o que acentua suas preocupações.
As revoluções na biotecnologia e na tecnologia da informação (...) nos permitirão arquitetar e fabricar vida. Vamos aprender a projetar cérebros, a estender a duração da vida e a eliminar pensamentos segundo nosso critério. E ninguém sabe quais serão as consequências disso. (HARARI, 2018, p.26)
Refletindo especialmente sobre a Inteligência Artificial o autor vislumbra um futuro em que o grande desafio para a classe trabalhadora será lutar não contra as elites dominantes e detentoras dos meios de produção, mas sim contra sua própria irrelevância. "Alguns creem que dentro de uma ou duas décadas bilhões de pessoas serão economicamente redundantes" (p.40). Mas assim como Bill Gates o autor parece otimista com as soluções para esse problema.
A perda de muitos trabalhos tradicionais, da arte aos serviços de saúde, será praticamente compensada pela criação de novos trabalhos humanos. (...) A IA poderia ajudar a criar novos empregos humanos de outra maneira. Em vez de os humanos competirem com a IA, poderiam concentrar-se nos serviços à IA e na sua alavancagem. Por exemplo, a substituição de pilotos humanos por drones eliminou alguns empregos, mas criou muitas oportunidades novas em manutenção, controle remoto, análise de dados e segurança cibernética (p. 51-52)
Porém, justiça seja feita, Harari parece mais realista do que Gates a respeito do futuro das profissões: "Não podemos ser complacentes. É perigoso simplesmente supor que surgirão novos empregos para compensar quaisquer perdas. O fato de isso ter acontecido em ciclos anteriores de automação não é garantia nenhuma de que vai acontecer de novo nas condições muito diferentes do século XXI" (p.57).
Enfim, embora ninguém tenha bola de cristal, temos pelo menos uns 30 anos de discussões sobre os impactos da tecnologia sobre nossas vidas, especialmente sobre nossos empregos. Incerteza por incerteza, o melhor que temos a fazer é nos preparar para as mudanças com as armas que temos, principalmente a educação!
Referências
GATES, Bill; RINEARSON, Peter. A estrada do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.